Imagine
você amigo, que logo ao nascer recebe como presente um nome aparentemente
absurdo e desmerecedor.
Pois
é... Este foi o meu caso. Quando era criança eu tinha vergonha de falar sobre
isso com os meus colegas, pois fui premiado com um nome nada abonador:
Calcanhar!
– Parece mentira, não é?
O
pior era ter que explicar a eles que meu nome não se referia ao meu próprio calcanhar,
mas sim, ao calcanhar do meu irmão gêmeo.
É
que eu nasci “segurando” o calcanhar dele. Aí já sabe o que aconteceu: “Olha
que graça! Ele está segurando o calcanhar do primogênito: Vai se chamar Calcanhar”.
Como
se não bastasse, ao crescer, meu irmão se tornara um cara esperto, malandro e
cheio de malicia: Um verdadeiro caçador. Enquanto eu gostava de ficar na minha
tenda, era mais caseiro e tinha uma boa dose de ingenuidade.
Para
piorar as coisas, nossos atributos físicos contribuíam para eu me sentir
inferiorizado: Meu irmão sempre foi mais viril: Quando nasceu já era meio
peludo e eu, mesmo adulto, sempre fui “liso”.
Acho
que hoje em dia seriamos apresentados como o Popular e o Nerd!
Certo
dia, quando ainda éramos jovens, aconteceu um episódio curioso:
Eu
estava dentro da nossa tenda cozinhando lentilhas, quando meu irmão chegou da
caça – Que contraste! – “O caçador e o cozinheiro!” – Parece nome de comédia,
não é?
Ele
estava muito cansado, suado e com a respiração ofegante. Ao sentir o cheiro da
comida, me pediu que eu lhe servisse um prato. Respondi-lhe, quase que
instintivamente que daria a comida, porém sob uma condição: Que ele me cedesse
em troca a sua primogenitura. Sem titubear meu irmão consentiu com a idéia e
nós fechamos o negocio.
Vários
anos depois, devido à idade avançada e à cegueira completa, meu pai decidiu
transmitir a herança e a liderança do clã a meu irmão. Parecia lhe que a morte
se aproximava.
Naquela
época a sucessão era transmitida através de uma benção. Ao primogênito cabia
tudo, inclusive seus irmãos, que lhe serviriam como uma espécie de servos –
Hoje isso parece tão... Politicamente incoreto, não é?
Para
que a benção fosse dada com satisfação, meu pai pediu a meu irmão que lhe
trouxesse alguma caça para degustar. E meu irmão... foi a caça!
Enquanto
meu pai Isaac esperava pelas iguarias, minha mãe Rebeca, a portadora da
mensagem Divina que dizia ser eu o destinado à sucessão, ordenara que eu me
disfarçasse, de modo a enganar o meu pai e apanhar a benção. – Eu não curti
muito a idéia!
-
Minha mãe era esperta, vinha de uma família maliciosa, enquanto meu pai era
ingênuo. Sendo assim, porque será que ela gostava mais de mim, o ingênuo,
enquanto meu pai gostava mais de Essav, o esperto ? Seria por que os opostos se
atraem?
E
porque se atrairiam? Talvez seja uma forma de aprender com o outro, cada qual
aquilo que lhe falta para atingir o tão almejado equilíbrio?
Desculpem-me
a divagação. Mas agora volto ao assunto e prometo não desviar mais:
Conforme
ordenou minha mãe, disfarcei-me e com uma atuação meio capenga, convenci meu
pai de que eu era seu primogênito Essav, levando a sucessão e a liderança do
clã.
Depois
que meu irmão descobriu o engodo, tive que fugir, pois ele simplesmente decidira
me assassinar. Sob o pretexto de procurar uma mulher para me casar fui me
refugiar em Haran, que fica na região da Síria, na casa de meu tio Lavan.
Após
partir tive a sensação de ter errado por iludir o meu pai e por ter roubado a
liderança de meu irmão.
Será
que eu realmente tinha o direito à sucessão? O que faria eu no lugar de meu
irmão? E no lugar de meu pai?
Será
que eu retornaria um dia às terras prometidas ao meu avô Abrahão? Será que eu
continuaria seu legado espiritual? Aquelas terras pertenceriam a mim?
Depois
de todas estas questões ainda vinha outra, mais difícil e amarga do que as
anteriores, pois esta não se referia a direitos ou a reconhecimento e sim a minha
auto-percepção e as minhas próprias deficiências e limitações:
Teria
alguém tão ingênuo e inseguro como eu a capacidade exercer uma função tão
importante como a liderança da família de Abrahão, portadora da tão valiosa
mensagem Divina para a humanidade?
Aqui
terminava a primeira fase de minha vida, marcada pela baixa auto-estima,
reforçada pelo desprezo paterno, pela comparação de minha frágil figura a de
meu valente irmão e, é claro: Pelas marcas deixadas por seu Calcanhar em minha
pisoteada personalidade!
A segunda fase, ou melhor,
a passagem para a segunda fase começou na primeira noite depois da minha
partida, ou melhor, da minha fuga.
Após um longo e cansativo dia
de caminhada, deitei-me numa colina para dormir.
Achei que aquela seria uma
noite diferente das outras, somente devido ao sono ao relento e aos mosquitos,
mas logo que adormeci percebi que a partir daquele ponto minha vida iria mudar.
É que tive um sonho, uma
revelação. Enquanto dormia vi uma escada gigantesca que ia da terra aos céus,
através da qual desciam e subiam lindos anjos. Naquela ocasião recebi uma
mensagem reconfortante: o Criador me assegurara a sucessão na liderança do clã
e do legado espiritual de meu avô e também me garantira sua proteção enquanto
estivesse em terras estranhas.
Agora eu estava mais sossegado,
porem não completamente, pois baseado nas historias de meu pai e avô, sabia que
estas promessas não significavam necessariamente vida calma.
De qualquer modo, a
experiência havia sido intensa e reconfortante.
Quanto às minhas
habilidades referentes á liderança, porem... Ainda tinha muitas dúvidas e
questões.
Ao
acordar, firmei um pacto com D’us: Se ele me protegesse e me beneficiasse, eu
destinaria a Ele o dízimo de tudo o que eu ganhasse. Com o coração carregado
com um misto de medo e esperança parti em direção a Haran, a terra de meu tio
Lavan.
Por
dias caminhei e refleti. Agradeci e chorei. Observei e me observei. Pensei.
Pensei
a respeito da vida que tivera até ali, a respeito das expectativas e
frustrações que meus pais transferiram para mim e a respeito das comparações e
das competições com meu irmão. Imaginei como seria minha vida sem estas
cobranças e como seria se eu pudesse ser eu, somente eu. Mas logo me vieram
novas e mais complexas questões: Quem sou eu? Não seria apenas um reflexo do
meio, da herança cultural e das expectativas que meus pais e avós depositaram em
mim? Eu Poderia ser algo alem disso? Teria escolha? Não seria a personalidade de
uma pessoa uma espécie de espelho refletindo o meio no qual se vive?
Olhando
ao meu redor via o deserto infinito, que no inicio de minha jornada me parecera
uma extensão de meu vazio interior. Com o passar dos dias, porem, comecei a
alternar: As vezes deserto e as vezes Oasis: Este exílio forçado me faria bem?
Hoje
a resposta me parece obvia, pois o que havia por trás destas situações nada
mais era do que a invisível, porem presente, poderosa, porem delicada e
orientadora mão de Deus, que nos impele sempre à evolução, cabendo a nós a
aceitação ou o desprezo de tal dádiva.
Um Poço!
Desde
que ouvira a historia de como minha mãe fora escolhida para se casar com meu
pai através de um “teste” ao lado de um poço de água, tenho simpatia por poços.
Para mim eles representam o conceito de revelação, pois através deles a água,
anteriormente escondida nas profundezas da terra, se revela à superfície.
E
foi justamente num poço de água que D’us se revelou a mim: Através de sua
providência e de uma moça que me deixou apaixonado: Minha prima Raquel, que por
“coincidência” viera buscar água para seu rebanho apenas
minutos
depois de minha chegada.
Agora eu chegara a meu destino
Quando
me dei por mim, já estava sentado no tapete central da grande tenda de meu tio
Lavan. Para minha surpresa, me senti muito a vontade, pois a decoração lembrava
muito a que havia nas tendas de meus pais: Tapetes de lã tingido, adornos de
metal, utensílios e peles de animais pendurados nas paredes, Narguiles,
darbucas e outros adornos semelhantes. Não fossem os ídolos espalhados pelo
recinto, poderia facilmente pensar que estava em casa:
Outra
coisa que caracterizava o ambiente era o forte cheiro do incenso e das velas
acesas às divindades que dividiam o espaço com a família.
No
inicio fui muito bem tratado. Meu tio contava fatos engraçados e curiosos de
sua infância com minha mãe e outras amenidades do tipo. Quanto mais passava o
tempo, mais a vontade eu me sentia, pois quase tudo me lembrava meu lar. Até
mesmo a comida era parecida: O modo de assar os pães, as carnes dos carneiros, os
temperos agridoces e coloridos e os odores e sabores dos chás... Tudo recordava
minha família, com a agradável exceção do clima pacífico e ameno reinante, que
em nada lembrava o que se passava entre eu e meu desagradável irmão Essav.
Minha
vida andava maravilhosamente bem, até que a verdadeira face de meu tio se
revelou:
Lavan
era um homem dissimulado e perverso, uma versão piorada de meu irmão!
Estaria eu acordando de volta ao pesadelo?
Sim!
A resposta teria sido positiva se não fosse a presença de outro fator, muito
mais poderoso do que o ressentimento e receio que sentia em relação a meu tio:
O amor por minha prima.
Certa
tarde, após almoçarmos uma deliciosa costela de carneiro ao molho de vinho e damasco,
enquanto saboreávamos um doce a base de pistache e ouvíamos o som dos cantos e
dos atabaques de meus primos, meu tio me perguntou:
-Habibi
– meu querido – Quanto você vai querer ganhar de seu titio em troca do trabalho
que vai desempenhar aqui? Hã?
-Ao
sentir o perfume de minha prima Rachel, olhei para seus olhos, que sorriram
para mim. Minha resposta fora imediata, nem sei de onde a tirei. Dirigi um
olhar firme e decidido para meu tio e com o nariz apontando para sua face cavada
respondi:
-Eu
quero a Rachel! Trabalharei sete anos por ela! Darei o melhor de mim para poder
me casar com a sua filha e a farei muito feliz!
7 anos
-Foram
sete anos muito intensos: De minha parte, muito trabalho, dedicação, aumento de
produção e geração de riquezas. Do lado de meu tio... Trapaças, mentiras,
calotes, maus tratos, péssimas condições de moradia e de trabalho.
Mas,
se querem saber a verdade: Não posso reclamar da sorte, pois foi a partir destas
experiências que me tornei mais paciente, mais persistente e mais apto a lidar
com a trapaça e com a malícia, condições indispensáveis para exercer qualquer
tipo de liderança, seja de um povo, ou somente de uma família, o que me animava
um pouco, pois ainda me flagrava imaginando meu retorno à minha terra natal
para assumir a liderança do clã.
Apesar
de todo o mal com o qual fui “presenteado”, senti o passar daqueles anos como
se fosse o de dias, pois não parava de pensar em minha prima. Estava embriagado
por seu amor e isto entorpecia meus sentidos, de modo a anestesiá-los da dor
infligida por meu tio.
O Casamento
Depois
do dia do meu nascimento, este seria o dia mais importante da minha vida, com a
grande diferença de que desta vez eu não entraria em cena segurando em um
fétido calcanhar destinado a me pisotear, mas sim nas macias mãos de minha
amada, destinadas a me acariciar, me acompanhar e me apoiar.
Maravilhoso!
O ambiente era deslumbrante: Os flautistas e percussionistas mais famosos da
região encantavam os convidados com a magia de seus ritmos, que alternavam do
hipnotizante lento ao empolgante ligeiro.
Os
passos dos mais hábeis dançarinos, através de sua destreza e sutileza puxavam
os convidados às rodas de dança, como se fossem invisíveis e delicados laços de
ceda. As empolgadas cirandas, por sua vez, faziam par com as chamas de fogo das
tochas, numa encantada coreografia.
As
iguarias, preparadas pelos mais qualificados “chefs” da região, com seus
ingredientes importados e seus temperos exóticos, deliciavam os paladares dos
mais mimados convivas, ao mesmo tempo em que despertavam admiração e inveja nas
mais esmeradas donas de casa.
Os
trajes dos convidados era um capítulo a parte: tecidos das mais variadas
texturas , tingidos das mais diversas cores
e espelhando os mais variados brilhos alegravam e iluminavam o ambiente,
formando trio com os arranjos de flores e com as dezenas de tapetes coloridos
estrategicamente posicionados.
A
beleza e o deleite eram tão supremos que até mesmo os contrastes se
harmonizavam, formando belos e inesperados casais:
Os
deliciosos refrescos que regavam nossas gargantas e a secura do deserto
circundante; A iluminação intensa de nossas tendas e a escuridão do céu
estrelado; A vida rarefeita ao nosso redor e a vitalidade esbanjada nas danças,
nas rodas de conversas e nas gargalhadas.
Era
tudo uma coisa só. Mas para aquelas pessoas ou elementos que ainda teimavam em
permanecer em estado de autonomia, havia um elixir a base de anis, a milenar e
tradicional bebida dos desertos, o Arak, que após alguns goles e minutos,
terminava por fundir toda aquela beleza, alegria, música, paladares, danças e
sentimentos no denso e saboroso caldo do Êxtase!
Mas
tudo aquilo tinha um só motivo, um objetivo sublime: A fusão de dois corpos, dois
corações e duas almas. Era o meu casamento com minha amada prima, Rachel.
Logo
a cerimônia tomaria seu lugar no centro dos acontecimentos, monopolizando todas
as atenções e olhares, emoções e expectativas. Evocando memórias distantes que
há muito jaziam nas tumbas do esquecimento.
Neste
momento tropecei na corda da depressão, pois senti a ausência de meus pais, mas
os cumprimentos e desejos de sucesso logo me ergueram a realidade.
Velhos
anciões com suas longas e alvas barbas se postavam ao redor do altar, coberto
pelo lindo manto estrelado e sob o foco da bela e prateada luz lunar.
Suas
longas túnicas, decoradas com misteriosas figuras de astros ou dragões, aliadas
ao som da ventania e ao vapor emanado pelas areias outrora escaldantes
impingiam um ar de mistério à cerimônia nupcial.
Corujas,
calangos e outros seres noturnos, representando o reino animal, assistiam a
tudo de uma distância segura.
A
noiva chegara. Estava linda, caminhava leve como uma pluma e dela exalava um
perfume indescritível, era como se tivesse sido abençoada com os odores das
mais cheirosas e delicadas flores.
Sua
pele era macia e brilhante, certamente tinha se untado com os mais finos óleos
da região.
Seus
cabelos estavam diferentes. Nesta noite seus negros cachos estavam mais
definidos e brilhantes, parecendo até mais compridos do que normalmente.
O
véu que cobria seu rosto era como uma névoa misteriosa; última fronteira entre
o explorador e o Paraíso. Ao mesmo tempo em que este adereço me incomodava, me
deixava mais e mais ansioso pelo momento em que poderia retirá-lo, desfrutando
a sós da beleza e do amor de minha tão amada e esperada Rachel.
A revelação
Depois
de findada a festa, a esperada e desejada hora chegara. Estávamos os dois à sós
em nossa simples, porem aconchegante morada, construída a base de meu suor e
patrocinada por minhas parcas economias, a qual fiz questão de inaugurar
somente nesta noite, abdicando de fazê-lo antecipadamente, mesmo que vivendo na
precária e semi-destruída moradia cedida por meu tio.
Meu
coração estava acelerado, batendo em compasso com meu ansioso corpo e contrastando
com meu apascentado espírito.
-Rachel
- Dirigi-me a ela com o mais agradável tom de voz encontrado, de modo a
expressar minha felicidade e desejo
-Rachel! - Repeti, tendo o silêncio como resposta.
Olhei
para sua testa, que me pareceu desbotada, pois ao invés do habitual bronzeado
tingido pelo Sol, o que se via era um branco pálido como a cera das velas. E
exatamente como esta cera que pinga em gotas ao se derreter, pareciam as
lágrimas que rolavam de seus olhos, que evitavam a todo o custo encontrar com
os meus.
-Perplexo
eu olhava para minha tão desejada esposa, que depois de um simples gesto se
convertera na mais desprezada das mulheres:
-Rachel
retirara o véu e eis que era... sua irmã Leah!
Aquele
fora um momento decisivo na minha vida, um separador de águas, pois os minutos
que se seguiram assistiram e testemunharam a primeira vez em que eu confrontei
alguém de forma explícita e corajosa, um importante passo na minha evolução e
na reconstrução de minha personalidade.
Eu
ainda não percebera, mas era a mão de Deus que estava me conduzindo!
Enquanto
ouvia meus brados e ameaças, meu tio se fazia de rogado, simulando espanto e
admiração por minha reação.
-Sobrinho
– Disse ele enquanto me media com seus olhos arregalados e tremedeiros – Por
que você está fazendo este escandalo? Quem deve estar surpreso aqui sou eu com esta
sua reação emotiva e brutal!
O
modo como você esta agindo faz com que eu me arrependa de ter dado minha valorosa
filha para você!
Está
parecendo uma criança mimada– Arrematou meu tio com seu rosto cavado, encimado
pelas sombrancelhas que me observavam dos pés de seu adunco nariz, arqueadas em
sinal de desprezo.
-Se
você ainda quiser se casar com minha Rachel, deverá servir por mais sete anos.
Porem... como uma demonstração de boa vontade, deixarei com que se case com ela
daqui a sete dias, com a condição de que complete os sete anos de trabalho. Mas
para que isto aconteça você deve começar a se comportar como um homem e não
como um descontrolado moleque, senão... Adeus Rachel! He He He!
Aquelas
palavras perfuraram meu coração e eu não podia por tudo a perder, então decidi
dar alguns passos para trás de modo a tomar distância para um futuro salto.
Aceitaria as condições de meu tio, mas daqui em diante, prometi para mim mesmo
que eu seria uma nova pessoa, deixaria minha ingenuidade de lado e começaria a
me defender, mesmo que para isso tivesse que apelar para truques e artifícios.
Os
sete dias se passaram e casei-me com Rachel, a quem dedicava toda minha paixão,
enquanto à minha segunda esposa, Leah, eu somente conseguia dedicar, alem do
desprezo, as refeições diárias e uma espécie de compaixão, pois afinal de
contas, se tratava de uma vitima do mesmo algoz que eu.
As
chagas rasgadas pelo sentimento de injustiça que me perfurara nos sete anos
seguintes, foram cicatrizadas pelo amor de Rachel e pelo nascimento de meus
filhos, que trouxeram consigo carinho, amor e respeito também por Leah.
A
estas duas esposas, agora queridas, se somaram suas duas servas, que nos
agraciaram com o nascimento de mais quatro filhos.
Rachel,
que vivera o drama de assistir a onze partos sem ter gerado, finalmente fora
gratificada por Deus com Iossef, que também me trouxera muito alivio e
felicidade.
A
dificuldade de sustentar e gerir uma família tão numerosa era grande: Ciúmes
entre as esposas, rinhas entre os filhos, obtenção de mantimentos e educação
adequada. Mas as barreiras enfrentadas nos últimos anos me trouxeram bagagem e
repertório mais do que suficientes para lidar com os novos desafios, o que me
fez perceber que por trás de meu encontro e convívio com meu tio Lavan, talvez
houvesse um plano maior, voltado para a minha transformação de um ingênuo e
inseguro rapaz num arrojado e seguro homem apto para liderar o importante Clã
de Avraham, portador da sagrada mensagem Divina para a humanidade.
Findados
os sete anos de trabalho, já com as bagagens prontas e com os camelos arreados,
fui surpreendido por meu tio com uma nova proposta de trabalho, desta vez não
haveria nenhuma filha na negociação, o que estava em pauta eram riquezas
materiais e eu aceitei a proposta, pois afinal de contas precisava me prover.
Os
anos seguintes não trouxeram novidades quanto ao caráter e a ética de meu tio.
Trapaças, ofensas e mentiras continuaram sempre suas fieis e inseparáveis amantes.
Quanto
a mim, simplesmente vestira minhas velhas roupas de trabalho e retornara a
rotina:
-Acordar
todos os dias antes da alvorada, alimentar as galinhas, recolher os ovos, apascentar
os rebanhos, tosquiar sua lã, ordenhar, regar as plantações, plantar, colher, cavar
poços de água, reformar as construções e as cercas e tratar dos animais
adoentados. Estas eram as tarefas que ocupavam todo o meu dia, invadindo muitas
vezes a noite que eu procurava reservar para os meus filhos e para as minhas
esposas.
Agora,
assim como antes, cumpria todos os meus deveres com integridade e esmero, porem
despido da ingenuidade que me caracterizara e que me expusera aos abusos e artimanhas
de meu larápio tio, pois para cada um de seus truques, eu tinha uma defesa e um
contra-ataque.
O
passar dos anos, aliado ao trabalho árduo, a auto-preservação e principalmente
às bênçãos de Deus, nos brindaram com muita riqueza material, o que
conseqüentemente atraiu a inveja e as acusações de meus ciumentos e ingratos cunhados:
-Ladrões!
– Diziam eles, nos perfurando com seus olhares de nojo e desdém.
-Esta
riqueza toda foi roubada! Pertencia a nós! Yaacov, você não passa de um
trapaceiro!
-Um
vagabundo invejoso!
Minhas
esposas ouviam magoadas a estas acusações, mas não podiam fazer nada alem de tentarem
me consolar.
-Meus
filhos se sentiam intimidados pelos próprios tios e avô, que faziam de tudo
para afastá-los de mim.
Quando
a situação se tornara insustentável e a pressão chegara a seu limite, veio uma
nova revelação:
Lembro-me
muito bem daquela noite, o céu estava limpo e o clima fresco. Minhas esposas e meus
filhos já haviam dormido e eu ficara deitado meditando a cerca de nosso futuro
e das decisões que deveria tomar.
A música de fundo, formada pelo som emitido
pelas corujas e grilos completava o cenário.
À
medida em que o sono se infiltrava em meu corpo através dos portões oculares e
iam se fechando as cortinas das pálpebras, minhas preocupações foram se
dissolvendo no infinito caldo da imaginação, que foi sendo substituído pelo
Sumo da profecia.
Na
madrugada seguinte despertei mais cedo do que de costume. Também estava mais
seguro e decidido, pois após a revelação noturna, sabia que devia retornar a
minha terra.
Em
poucos dias estávamos prontos para partir: Rebanhos reunidos, camelos e
jumentos arreados, vestimentas e mantimentos ensacados, tendas desmontadas e
guarda montada.
Os
servos e as servas aguardavam ansiosamente o momento de partir, juntamente com suas
famílias, minhas concubinas, esposas e filhos.
Era
madrugada. Todos faziam silêncio e o mais absoluto sigilo reinava em torno de
nossa partida. Só se ouviam os grilos e as corujas.
Não
queríamos dar chances para Lavan e seus filhos tentarem nos impedir.
A
noite era fresca, como nossos ânimos, a Lua crescente tal qual nossas
expectativas e o céu cindido em nuvens e estrelas, assim como nossos
sentimentos de temor e esperança.
Após
três dias de caminhada, enquanto almoçávamos em uma de nossas paradas, Lavan e
seus filhos nos alcançaram e irromperam suados em nossa descontraída refeição,
chutando nossos alimentos e utensílios e me acusando aos brados de seqüestrar
seus rebanhos, filhas e netos.
Desaforo!
Humilhação! Vingança e até mesmo morte, foram algumas das palavras que eles empregaram
para nos ofender e intimidar. Suas espadas, contudo, mantiveram embainhadas, o
que parecia afastar a possibilidade de violência física.
Enquanto
meus filhos menores esperneavam agarrados ás suas horrorizadas mães, os mais
velhos aguardavam apreensivos por minha reação:
Não
tive dúvidas, caminhei de modo rápido e decidido na direção dos invasores e me
mantendo numa postura confiante, perfurei suas vistas e ouvidos com olhar firme
e voz enérgica, através da qual expressei minha indignação pelo ataque surpresa
e por todas as injustiças com as quais haviam me atingido nos últimos anos –
Foi uma lista imensa!
Decididamente,
esta não era a forma de reagir do Yaacov que eles conheciam e isso os pegara de
contra pé, fazendo com que se acuassem como se fossem pobres ovelhas perante
“seus” lobos!
Depois
que os ânimos se apascentaram, partilhamos uma refeição na qual celebramos um
pacto de não agressão, após o qual Lavan e seus filhos partiram.
Ao
observá-los, já a várias flechadas de distância, fascinado com minha própria
firmeza e coragem, pensei:
-Meu
Deus! Como mudei! O frágil e inseguro Yaacov que fugira a vinte anos da casa de
seu pai já não existe mais.
Voltei
para os meus filhos que me abraçaram e me cumprimentaram expressando orgulho e
admiração por minha reação. Esta foi a primeira vez que me senti altivo por uma
atitude tomada. Sorri, abracei a todos e me sentei num velho tapete para beber meu
chá de hortelã.
Enquanto
observava os irmãos imitando a minha discussão com o avô, a ameaçadora imagem
de Essav foi evocada como uma assombração em minha mente e então, com o coração
palpitando e já começando a suar, imaginei como reagiria se o reencontrasse.
Teria
coragem de encará-lo? Olharia firme e falaria alto, assim como fiz com Lavan e
com seus filhos?
Se
a resposta fosse negativa, então toda aquela metamorfose pela qual eu teria
passado seria somente uma farsa? E as dificuldades enfrentadas na casa de Lavan?
Teria sido tudo em vão?
Aflito,
saí da tenda para refletir. Naquele momento o sol se punha, pintando o
horizonte com tons róseos e dourados, salpicados pela tempestade de areia que se
aproximava. Enquanto avistava as grandes nuvens de pó, distingui no meio delas
o rapaz que eu havia enviado para fazer o reconhecimento do caminho. Ele vinha
aflito e assim que chegou me contou a terrível notícia:
-Seu
irmão Essav está vindo ao nosso encontro e está acompanhado de quatrocentos
homens armados.
-Deve
estar com medo de que eu assuma a liderança recebida através da benção de meu
pai – Pensei.
Tive
vontade de chorar, senti meu coração apertado e uma leve tontura balançou minha
cabeça:
Da
euforia da vitória à temeridade do fracasso. O advento de uma nova personalidade
valente e cheia de coragem seria apenas um sonho do inseguro rapaz? Um delírio?
Naquela
madrugada meu coração se derreteu em abundantes lágrimas, nas quais navegaram
meus assombros e receios. Meu maior temor era o de que Essav cometesse um
massacre de mães e filhos. Este seria o horror supremo, a contradição entre o
nosso carinho e a crueldade de meu irmão: Lagrimas e sangue, abraços e golpes,
beijos e ofensas: O Amor e A morte.
Depois
de alguns momentos observando as mudanças causadas nas dunas pela ventania,
pensei:
Amor
e A morte... È isso! Que forma melhor haveria de se combater a morte do que com
o amor?
Se
eu apelar aos sentimentos exacerbados de amor-próprio de meu irmão, talvez isso
amenize sua vontade de me matar:
Separei
um numero considerável de animais para que a ele fossem levados por alguns de
meus servos. Quando eles o avistassem, deveriam se curvar dizendo as seguintes
palavras: Estes presentes foram enviados para o senhor por teu servo Yaacov.
Òtima
idéia – Pensei comigo mesmo - “Servo
Yaacov...!”
Os
presentes, talvez o acalmem, mas as palavras “teu servo Yaacov”, certamente anestesiarão
seu desejo de vingança, pois o simples fato de ouvir-me chamá-lo de “meu Senhor”,
o fará concluir que as bênçãos que recebi de meu pai não surtiram efeito. Para
reforçar esta ideia, elogiarei seus atributos de força e valentia enquanto
descreverei a mim e a meus filhos como débeis e frágeis.
Já
mais aliviado e confiante, me dirigi à tenda, onde beberia um chá e dormiria.
Queria estar disposto para o dia seguinte, mas algo Inesperado aconteceu: Fui
atacado por um estranho, com a aparência difícil de se definir. Parecia um ser
espiritual, uma espécie de anjo.
De
seu corpo emanava um tipo de luz e seus movimentos eram muito rápidos. Sem
opção pus-me a lutar.
No
início somente me defendi, mas com o passar do tempo passei a atacá-lo.
Era
uma luta sui-gêneris e multifacetada, pois do corpo, a luta se estendia às
emoções, aos pensamentos e ao corpo espiritual.
Após
horas de embate, o Ser decidiu se retirar. Percebendo se tratar de algo do
alem, pedi-lhe que me abençoasse, ao que ele rebateu, perguntando o meu nome.
-Yaacov
– Respondi.
-Seu
nome não será mais Yaacov e sim Israel que significa Aquele que lutou contra
Homens e contra o Anjo de Deus e venceu.
Do
mesmo jeito misterioso que o anjo surgiu ele se foi, deixando como rastro uma
efêmera névoa, que logo se desfez.
Em
poucos minutos avistei o recém nascido sol vencendo a primogênita escuridão. Seria
uma metáfora?
Fiquei
parado, estupefato.
Yaacov,
o “Calcanhar do irmão” não existia mais...
Eu
me tornara Israel, o vencedor!
Abraços! More Ventura!
5 comentários:
O texto foi escrito de uma forma que envolve o leitor , instigando-o. Quanto a história me faz pensar :
Quantas vezes não nos sentimos pequenos e não nos damos conta do que o Eterno quer para nós ?
Quantas vezes o medo de ir além nos impede de crescer ?
A narrativa demonstra o quanto somos o produto daquilo que acreditamos, no que vivemos e no que aprendemos em nossa vida.
Ao aprendizado e as ações que podem determinar o que somos e o que desejamos ser.
como ja havia falado..PERFEITO E MARAVILHOSO texto....precisamos de mais...Ninah
Meu querido amigo e professor Ventura, obrigado por mais essa história contada com vida... Eu aprendi desde pequeno sobre Yaacov e essa usurpação e temeridade posterior, comum a quem vive de um passado de erros contra outros, quem faz assim se torna escravo de fantasmas. Mas é importante ver na história contada de forma tão poetica por você que apesar de todas as dificuldades da nossa vida e nos passos errados, em tudo podemos ver o bem de D'us a transformar todas as coisas, algumas palavras me chamaram bastante atenção, são parte do que chamamos viver, "observei e me observei", "as vezes deserto, as vezes oasis", "o amor e a morte", precisamos olhar tudo com calma as vezes, olhar dentro com calma também, achar os poços de água no caminho e em nós, tirar forças de onde não há pra prosseguir e com amor vencer a morte (vencer a desistencia, o abandono de nós mesmos). Eu me vi no texto, e por isso tenho mais força pra me deixar transformar por D'us, pelos poços adiante, pelas adversidades, e por fim importa o nome (estigma) que os homens nos dão? Não, importa sim o nome, destino que o Eterno nos dá, esse nos faz melhores, maiores, nos faz existir de fato. Obrigado amigo, sempre!
Ventura, fico emocionada e grata de voc mencionar nossos encontros... O texto e' perfeito, tocante e profundo... Dava um livro inteiro, achei lindo mesmo... Obrigada e obrigada por expressar tão bem , incluindo nossas conversas num texto maravilhoso... Bjs helloo
Parabens amigo more,aprendi muito com o texto.estou passando por umas situações,que me vi no deserto e oasis,casei minha filha unica faz cinco dias,e pensei e agora,me vi tambem na historia,me observei,procurava uma resposta e ao ler o texto a a li estava,metamorfose e Hashem esta comigo permitindo tudo,tudo para meu crescimento espiritual e a mudança em mim,obrigada amigo,seus textos tem me ajudado muito,a crescer em todas as areas da minha vida,permitindo com alivio as mudanças direcionadas por Hashem,obrigada e muito shalom.hadassa camelo
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