segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Judaismo - Por favor, Não comece por aqui !



Você já pensou sobre a dramática diferença que pode fazer na vida de uma pessoa iniciar a leitura de um livro a partir desta ou daquela página ?
Começar a leitura de um livro a partir duma página bem escolhida pode significar o início de uma linda história de vida, enquanto que estrear uma leitura apenas um milionésimo de centímetro de largura de folha depois, pode arruinar a existência de um ser humano!
Tão perigoso pode ser embarcar num livro a partir de uma pagina mal escolhida, que algumas delas deveriam ostentar antes de suas primeiras linhas uma advertência em negrito:
“Perigo! Não comece por aqui !”
Imagine que dois irmãos, gêmeos univitelinos, educados pelos mesmos programas de televisão, consumidores dos mesmos refrigerantes e hambúrgueres e torcedores do mesmo time, tomam rumos completamente diferentes em suas vidas, pelo simples fato de abrirem uma obra Literária... Em páginas diversas!
O livro era um daqueles velhos exemplares da Lei de Moises, com capa bordô desbotado.
Aonde o haviam encontrado ? Numa velha sala de banhos! Uma vergonha! Sim, no meio de uma pilha de revistas de fofocas, moda e gibis, que jaziam numa antiga banheira desativada devido à ferrugem abrigada há anos no interior do seu encanamento.
No meio da pilha “cultural” repousava á contragosto o Livro dos Livros, esperando por uma nova oportunidade de revolucionar vidas, abalar alicerces e despertar mentes dormentes.
Devido a uma “falha” causada pelo bisavô neurótico, que cismara em arrancar todas as páginas que não contivessem o seu nome, achando que isso lhe conferiria um papel mais central no comando de sua família, a bíblia começava e terminava com a história do primeiro patriarca do povo de Israel, Abraão.
Portanto, saibam vocês, esta bíblia é exclusiva, pois é a única no mundo, (até onde sabemos), na qual o livro do Gênesis começa no capítulo 12 e termina no capítulo 22!

Genesis 22

-“E disse o Senhor para Abraão: pegue o seu filho, o seu único filho, aquele que você ama e sacrifique-o para mim!”
-“...E Abrahão pegou o facão para abater o seu filho Isaac e o anjo do Senhor segurou a sua mão...”
-“...E disse o Senhor: Por que me obedecestes, abençoada será a sua semente...”
-Meir, o gêmeo “mais velho”, ficou deveras impressionado com a cena lida e tão coloridamente imaginada, que chegou a ponto de atribuir o suor que banhava seu corpo e a dificuldade que sentia em respirar à identificação que sentira com Isaac, o cordeiro do relato, ignorando que a fonte de tal sufocamento fosse o vapor emanado pela água fervente que saia do chuveiro e que já fazia suar todas as paredes da sala.
-Obediência...Esta é a palavra chave!  -Concluiu o menino:
-Eu faria o mesmo! Se Deus me mandasse matar o meu filho, o meu mais amado filho, eu... o mataria ! E se Deus mandasse meu pai me... Bom, deixa pra lá, agora eu tenho que tomar meu banho, pois foi isso que minha mãe me mandou fazer e como dizia o grande Avraham: “Obediência acima de tudo !”
Noutro dia, depois de voltar da escola, adentrar seu quarto e descarregar o fardo de suas costas, o gêmeo  caçula, Mayer, aproveitando a ausência do mais velho, foi logo fuçar o “território vizinho”, dando de cara com:  Adivinhe... Aquele mesmo livro, que resgatado do vaporoso recinto indigno, agora jazia sobre o travesseiro de seu irmão.
Cuidou o destino que este tivesse sorte diversa ao adentrar o universo do sagrado livro:           O antiquíssimo, porem ágil portão da leitura aliada à imaginação se abriu. Nele estava encravada uma reluzente placa ostentando os seguintes dizeres:

Gênesis capítulo 12

-“E disse o Eterno a Abrahão, vai embora da terra de onde você nasceu... para uma terra que te darei e eu te farei uma grande nação e engrandecerei o seu nome e você será abençoado!” “...E aquele que te abençoar será abençoado e o que te amaldiçoar, amaldiçoado será...!”
- A-NI-MAL!!!  Esse Avraham devia ser muito querido, por que Deus ofereceu todas estas coisas pra ele fazer a Sua vontade ! Alem do mais, nessa historia Deus não parece ser tão durão como eu tenho ouvido alguns adultos dizerem: Deus castiga! Deus castiga!
“Medo e Amor” – Este poderia ser o nome da obra que teria como início duas paginas diferentes do mesmo Livro!

Ainda muito impressionado com a cena do sacrifício. Ainda antes de seu irmão achar o livro em cima de seu travesseiro, o primogênito Meir continuara a leitura da história de Avraham até o final, mas obviamente, após perceber que já teria chegado ao ápice do desenvolvimento espiritual do Patriarca, não sentiu necessidade alguma de ler o início e o meio da vida de seu agora ídolo. E este se tornou seu lema: Obediência acima de Tudo !
Meir não se separava do livro e cismava em dormir com ele debaixo do travesseiro, o que dificultava a missão do caçula Mayer de continuar a sua leitura, forçando-o a esperar o irmão adormecer, para delicada e silenciosamente pinçar a Obra de sob sua cabeça.
Deliciosas noites de leitura que desembocavam em sonhos ambientados na história Bíblica foram se somando e quanto mais o caçula sentia o perigo de seu irmão descobrir seu “furto”, mais a leitura se tornava perigosa e agradável:
Os dias foram voando rapidamente como uma ventania e o persistente Mayer, envolto no manto das trevas noturnas, abria mais e mais portões, através dos quais entrava madrugada adentro no antigo mundo do venerável patriarca, seguindo-o em seus desertos de desafios e dilemas, bebendo de seu Oasis de conclusões e se refrescando em sua inesgotável fonte de fé.
Entre suas vivências oníricas estavam a revelação de Deus a Abrahão, sua jornada rumo a Terra Prometida, a seca e a partida para o Egito, onde compartilhou os temores do patriarca relativos a morte e a perda de sua querida esposa Sarah nas mãos do Faraó.
Ainda em seus sonhos, o jovem lutou lado a lado com o patriarca para salvar seu sobrinho Lot, ficou perplexo ao ver sua recusa em se apoderar das riquezas da cidade de Sodoma, Chorou copiosamente ao ver seu guru em prantos despedindo seu filho Ishmael, compartilhou da refeição que Abrahão ofereceu aos três anjos que vieram lhe noticiar o nascimento de um filho, ouviu estupefato seu mestre argumentar com Deus quando este lhe anunciara a destruição das cidades perversas de Sodoma e Gomorra e brindou o nascimento de seu filho Isaac da nonagenária matriarca Sara, milagre que lhe comprovara claramente a existência de Deus e de Seu poder e amor absolutos.
Certa noite gelada, após a leitura, Mayer atravessou respeitosamente o portão do capítulo 22, após o qual despira se do frio, vestindo se com o calor do deserto e da grande pira de fogo sustentada pela destra do patriarca Abrahão, ladeado por seu filho, Isaac.
Após seguir o Patriarca exaustivamente por desertos e trilhas misteriosas, descansar em cavernas, atravessar rios e passar horas em sua tenda conversando e ouvindo seus conselhos, era chegada a hora de subir a montanha. Ir para o alto, desafiar a força da gravidade, transcender, ir além!
Mas... já era tarde demais. Ou melhor, cedo demais!
Vamos, levantem Meir e Mayer, vocês querem se atrasar para a escola ?
Horas depois, na escola :
-”obediência acima de tudo!”
-Mas Meir, você não viu que o professor foi injusto com você ?  Ele te culpou pelo que o Carlos fez!
-Mas devemos obedecer... Vamos pra sala de retenção !
Enquanto Mayer se afogava no mar da “obediência cega”, seu irmão se preparava para escalar o monte da compreensão:
-Professor, me desculpa, eu compreendo o seu ponto de vista, mas eu gostaria de te dar a minha opinião...
-Cala a boca menino! Eu não quero ouvir a sua opinião!
-Mas professor, porque o senhor está gritando ? Eu somente queria dar a minha opinião com respeito e sem levantar a voz.
Um livro, duas paginas, dois caminhos!
A noite seguinte não foi diferente das outras: Meir adormeceu com o livro debaixo de seu travesseiro, satisfeito em lembrar-se da cena do sacrifício, enquanto Mayer, ao esperar seu irmão pegar no sono, recordava o trajeto que trilhara até chegar ao topo do monte.
O momento tão esperado havia chegado:  Meir adormecera e já roncava.
Era tarde, o assovio da ventania passando pelas frestas da persiana temperava o ambiente misterioso da leitura que se iniciava. O portão 22 se abria simultaneamente com a porta do quarto, tal qual uma coreografia entre as dimensões concretas e espirituais da realidade do menino. Ambas as portas se mantiveram abertas, como que apontando para a possibilidade de voltar para trás.
Como acontecia sempre, após a leitura o sonho, a vivência:
Depois de três dias de caminhada você aparece ? Como foi na escola Mayer ? Venha, vamos subir...
-Avraham, o senhor vai mesmo sacrificar o seu filho ?
-Meu querido, disse o velho com os olhos marejados e com um leve sorriso no rosto enrugado, enquanto seus longos cabelos brancos dançavam ao vento:
-Meu jovem eu compreendo a sua surpresa, mas como você sabe não cheguei aqui agora! Foram anos de questionamentos e aprendizado, dúvidas e crença. Nesta minha jornada aprendi a ouvir, a lutar e a negociar, neste caminho tive muitas dúvidas, mas cheguei à verdadeira fé... e agora: Chegou a hora de crescermos, de subirmos, de nos elevarmos ao topo da montanha!
Ao chegar no topo do monte Moriah, Abrahão deitou Isaac em cima da lenha e com os olhos marejando, preparou se para cumprir a odem Divina.
 -Vendo o ancião levantar o facão afiado na direção do pescoço de seu filho os olhos de Mayer quase saltaram e ao ver seu espanto o bom velho disse:
-Meu filho não se preocupe, pois na realidade não somos o corpo físico e sim a alma!
A alma quando vem ao mundo vem a trabalho, vem para uma missão, a morte não existe, é só a passagem de uma dimensão para outra, por isso temos que ter coragem e seguir nossa consciência para que...
Quando Abrahao ia degolar Isaac, o “visitante”, ouvindo um susurro virou-se para o lado:
-Muito bem! Obediência acima de tudo!
Naquela noite, antes de cair no sono, Meir o primogênito decidira reler o relato do sacrifício de Isaac e como o portão estivesse aberto, entrara também!
O Caçula ficou desconcertado. Não esperava encontrar seu irmão naquele lugar. Sem tirar os olhos do “ato central”, Mayer caminhara na direção de Meir e ao seu lado viu pela primeira vez a cena que tanto marcara e definira o futuro de ambos.
-Ao terminar o sacrifício abortado, o caçula abraçou o patriarca enquanto seu irmão repetia:
-Obediencia, obediência!
-Quando se preparou para descer o monte, Mayer vendo seu irmão inerte, falou:
-Vamos meu irmão ! Temos que descer! Amanhã teremos aula!
-Ao perceber que este não se movia, olhou para Abrahao, que movendo o indicador lhe disse:
-Não, meu filho! ele não vai descer, Como não conheceu o caminho para chegar, não pode conhecer o caminho para voltar. Venha Mayer, venha Isaac, vai ficar tarde!
-Estamos atrasados !
-Acordem meninos, estamos atrasados!
-Ãh...Ah ! Bom dia!
-Bom...
Espanto e medo, estes foram os sentimentos que ambos sentiram ao se encararem pela primeira vez após aquele sonho misterioso. Algo os levava a crer que de fato haviam se encontrado naquela noite... Fora de seus corpos físicos...
 -Passaram se dias, meses e anos e o caçula continuava suas leituras, nas quais conheceu e vivenciou as histórias dos patriarcas, de Moises e do povo de Israel, aprendendo também, as leis que regiam a sociedade judaica e a dinâmica de seu dia a dia.
Seu irmão Meir, por outro lado, fincou morada permanente no topo do monte Moriah, não arredando pé daquele capítulo, como que fazendo questão de fixar na frente de sua “tenda” uma faixa ostentando os seguintes dizeres em tinta dourada: OBEDIÊNCIA ACIMA DE TUDO!
 Mas meus amigos, a verdade seja dita: O tipo de obediência que lhe atraia, não era exatamente aquela que envolvia enfrentar pessoas ou situações que pudessem lhe tirar de sua zona de conforto. Era uma obediência seletiva, Se tivesse que obedecer a um rico, obedecia! A um chefe, obedecia! A Deus, obedecia... se isso não o indispusesse com... bem, deixemos isso para La !
É verdade que Meir assistira o supremo ato de obediência de Avraham, porem diferentemente de seu irmão, não conhecera o caminho que levava a tal nível de resignação:  Portanto, por mais que louvasse o ato de acatar e de se auto-sacrificar, fazia-o como um expectador que louva a beleza do espetáculo sem a possibilidade e o talento de reproduzi-lo por si mesmo.
Assim como anos antes, na sala de banhos, preferira imaginar-se abatendo seu filho à ser abatido por seu pai, para ele a figura de magarefe continuava sendo a mais atraente.
Com Mayer, o gêmeo caçula, era tudo diferente: Os valores que absorvera nos estudos e em suas vivências extra-físicas logo se tornaram os norteadores de suas ações; Era conhecido por sua coragem, iniciativa e conhecimento, mas sua fé era o que mais se destacava no maravilhoso mosaico de sua personalidade!
Em sua escola, se tornou representante de classe. Participou como voluntário em diversas Ongs, sempre se destacando por seu dinamismo e liderança. Trouxe para seu prédio e depois para toda a rua onde morava o lixo seletivo e divulgou através das redes sociais iniciativas e idéias edificantes que ajudaram a inúmeras pessoas necessitadas de atenção e de ajuda material. O lugar onde ele se sentava na sinagoga já era bem conhecido de todos, pois apesar da idade jovem, era sempre procurado por pessoas, que para ele direcionavam elogios e demandas das mais diversas, aceitas sempre com um olhar divertido acompanhado por alguma piada ou brincadeira, de modo a minimizar o elogio recebido ou o constrangimento do pedinte. Era incrível sua sensibilidade!
Mayer gostava muito de rezar, mas sua atividade preferida na sinagoga era ensinar os mais jovens.
Todos gostavam de suas aulas, pois eram profundas e divertidas ao mesmo tempo, porque Mayer... Mayer era cheio das piadas! A maioria delas eram engraçadas!...mas  para falar a verdade, só tinha uma brincadeira que Mayer fazia com certa frequencia e que ninguém achava graça, era quando dizia: Coloquem uma tarja nesta página dizendo:
“Perigo! Não comece por aqui !”
Se não fosse por sua seriedade ao falar esta estranha piada, justamente o que lhe conferia certa graça, o pessoal não riria nem um pouquinho. Mas tudo bem, não é?                                  
Afinal de contas:  As vezes, (Perigo, não comece por aqui!),  a forma conta mais do que o conteúdo!


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