Você já pensou
sobre a dramática diferença que pode fazer na vida de uma pessoa iniciar a leitura
de um livro a partir desta ou daquela página ?
Começar a leitura
de um livro a partir duma página bem escolhida pode significar o início de uma
linda história de vida, enquanto que estrear uma leitura apenas um milionésimo
de centímetro de largura de folha depois, pode arruinar a existência de um ser
humano!
Tão perigoso pode
ser embarcar num livro a partir de uma pagina mal escolhida, que algumas delas
deveriam ostentar antes de suas primeiras linhas uma advertência em negrito:
“Perigo! Não
comece por aqui !”
Imagine que dois
irmãos, gêmeos univitelinos, educados pelos mesmos programas de televisão, consumidores
dos mesmos refrigerantes e hambúrgueres e torcedores do mesmo time, tomam rumos
completamente diferentes em suas vidas, pelo simples fato de abrirem uma obra
Literária... Em páginas diversas!
O livro era um
daqueles velhos exemplares da Lei de Moises, com capa bordô desbotado.
Aonde o haviam
encontrado ? Numa velha sala de banhos! Uma vergonha! Sim, no meio de uma pilha
de revistas de fofocas, moda e gibis, que jaziam numa antiga banheira desativada
devido à ferrugem abrigada há anos no interior do seu encanamento.
No meio da pilha “cultural”
repousava á contragosto o Livro dos Livros, esperando por uma nova oportunidade
de revolucionar vidas, abalar alicerces e despertar mentes dormentes.
Devido a uma “falha”
causada pelo bisavô neurótico, que cismara em arrancar todas as páginas que não
contivessem o seu nome, achando que isso lhe conferiria um papel mais central no
comando de sua família, a bíblia começava e terminava com a história do
primeiro patriarca do povo de Israel, Abraão.
Portanto, saibam
vocês, esta bíblia é exclusiva, pois é a única no mundo, (até onde sabemos), na
qual o livro do Gênesis começa no capítulo 12 e termina no capítulo 22!
Genesis 22
-“E disse o Senhor
para Abraão: pegue o seu filho, o seu único filho, aquele que você ama e
sacrifique-o para mim!”
-“...E Abrahão
pegou o facão para abater o seu filho Isaac e o anjo do Senhor segurou a sua
mão...”
-“...E disse o
Senhor: Por que me obedecestes, abençoada será a sua semente...”
-Meir, o gêmeo “mais
velho”, ficou deveras impressionado com a cena lida e tão coloridamente
imaginada, que chegou a ponto de atribuir o suor que banhava seu corpo e a dificuldade
que sentia em respirar à identificação que sentira com Isaac, o cordeiro do
relato, ignorando que a fonte de tal sufocamento fosse o vapor emanado pela água
fervente que saia do chuveiro e que já fazia suar todas as paredes da sala.
-Obediência...Esta
é a palavra chave! -Concluiu o menino:
-Eu faria o mesmo!
Se Deus me mandasse matar o meu filho, o meu mais amado filho, eu... o mataria
! E se Deus mandasse meu pai me... Bom, deixa pra lá, agora eu tenho que tomar
meu banho, pois foi isso que minha mãe me mandou fazer e como dizia o grande
Avraham: “Obediência acima de tudo !”
Noutro dia, depois
de voltar da escola, adentrar seu quarto e descarregar o fardo de suas costas, o
gêmeo caçula, Mayer, aproveitando a
ausência do mais velho, foi logo fuçar o “território vizinho”, dando de cara com: Adivinhe... Aquele mesmo livro, que resgatado
do vaporoso recinto indigno, agora jazia sobre o travesseiro de seu irmão.
Cuidou o destino
que este tivesse sorte diversa ao adentrar o universo do sagrado livro: O antiquíssimo, porem ágil portão da leitura
aliada à imaginação se abriu. Nele estava encravada uma reluzente placa
ostentando os seguintes dizeres:
Gênesis
capítulo 12
-“E disse o Eterno
a Abrahão, vai embora da terra de onde você nasceu... para uma terra que te
darei e eu te farei uma grande nação e engrandecerei o seu nome e você será
abençoado!” “...E aquele que te abençoar será abençoado e o que te amaldiçoar,
amaldiçoado será...!”
- A-NI-MAL!!! Esse Avraham devia ser muito querido, por que
Deus ofereceu todas estas coisas pra ele fazer a Sua vontade ! Alem do mais,
nessa historia Deus não parece ser tão durão como eu tenho ouvido alguns
adultos dizerem: Deus castiga! Deus castiga!
“Medo e Amor” – Este poderia ser o nome da obra que teria como
início duas paginas diferentes do mesmo Livro!
Ainda muito
impressionado com a cena do sacrifício. Ainda antes de seu irmão achar o livro
em cima de seu travesseiro, o primogênito Meir continuara a leitura da história
de Avraham até o final, mas obviamente, após perceber que já teria chegado ao
ápice do desenvolvimento espiritual do Patriarca, não sentiu necessidade alguma
de ler o início e o meio da vida de seu agora ídolo. E este se tornou seu lema:
Obediência acima de Tudo !
Meir não se
separava do livro e cismava em dormir com ele debaixo do travesseiro, o que
dificultava a missão do caçula Mayer de continuar a sua leitura, forçando-o a
esperar o irmão adormecer, para delicada e silenciosamente pinçar a Obra de sob
sua cabeça.
Deliciosas noites
de leitura que desembocavam em sonhos ambientados na história Bíblica foram se
somando e quanto mais o caçula sentia o perigo de seu irmão descobrir seu
“furto”, mais a leitura se tornava perigosa e agradável:
Os dias foram voando
rapidamente como uma ventania e o persistente Mayer, envolto no manto das trevas
noturnas, abria mais e mais portões, através dos quais entrava madrugada adentro
no antigo mundo do venerável patriarca, seguindo-o em seus desertos de desafios
e dilemas, bebendo de seu Oasis de conclusões e se refrescando em sua
inesgotável fonte de fé.
Entre suas
vivências oníricas estavam a revelação de Deus a Abrahão, sua jornada rumo a Terra
Prometida, a seca e a partida para o Egito, onde compartilhou os temores do
patriarca relativos a morte e a perda de sua querida esposa Sarah nas mãos do
Faraó.
Ainda em seus
sonhos, o jovem lutou lado a lado com o patriarca para salvar seu sobrinho Lot,
ficou perplexo ao ver sua recusa em se apoderar das riquezas da cidade de
Sodoma, Chorou copiosamente ao ver seu guru em prantos despedindo seu filho
Ishmael, compartilhou da refeição que Abrahão ofereceu aos três anjos que
vieram lhe noticiar o nascimento de um filho, ouviu estupefato seu mestre
argumentar com Deus quando este lhe anunciara a destruição das cidades
perversas de Sodoma e Gomorra e brindou o nascimento de seu filho Isaac da nonagenária
matriarca Sara, milagre que lhe comprovara claramente a existência de Deus e de
Seu poder e amor absolutos.
Certa noite gelada,
após a leitura, Mayer atravessou respeitosamente o portão do capítulo 22, após
o qual despira se do frio, vestindo se com o calor do deserto e da grande pira
de fogo sustentada pela destra do patriarca Abrahão, ladeado por seu filho,
Isaac.
Após seguir o Patriarca
exaustivamente por desertos e trilhas misteriosas, descansar em cavernas, atravessar
rios e passar horas em sua tenda conversando e ouvindo seus conselhos, era
chegada a hora de subir a montanha. Ir para o alto, desafiar a força da
gravidade, transcender, ir além!
Mas... já era
tarde demais. Ou melhor, cedo demais!
Vamos, levantem
Meir e Mayer, vocês querem se atrasar para a escola ?
Horas depois, na
escola :
-”obediência acima
de tudo!”
-Mas Meir, você
não viu que o professor foi injusto com você ?
Ele te culpou pelo que o Carlos fez!
-Mas devemos
obedecer... Vamos pra sala de retenção !
Enquanto Mayer se afogava
no mar da “obediência cega”, seu irmão se preparava para escalar o monte da
compreensão:
-Professor, me
desculpa, eu compreendo o seu ponto de vista, mas eu gostaria de te dar a minha
opinião...
-Cala a boca
menino! Eu não quero ouvir a sua opinião!
-Mas professor,
porque o senhor está gritando ? Eu somente queria dar a minha opinião com
respeito e sem levantar a voz.
Um livro, duas
paginas, dois caminhos!
A noite seguinte
não foi diferente das outras: Meir adormeceu com o livro debaixo de seu
travesseiro, satisfeito em lembrar-se da cena do sacrifício, enquanto Mayer, ao
esperar seu irmão pegar no sono, recordava o trajeto que trilhara até chegar ao
topo do monte.
O momento tão
esperado havia chegado: Meir adormecera
e já roncava.
Era tarde, o assovio
da ventania passando pelas frestas da persiana temperava o ambiente misterioso
da leitura que se iniciava. O portão 22 se abria simultaneamente com a porta do
quarto, tal qual uma coreografia entre as dimensões concretas e espirituais da
realidade do menino. Ambas as portas se mantiveram abertas, como que apontando
para a possibilidade de voltar para trás.
Como acontecia
sempre, após a leitura o sonho, a vivência:
Depois de três
dias de caminhada você aparece ? Como foi na escola Mayer ? Venha, vamos
subir...
-Avraham, o senhor
vai mesmo sacrificar o seu filho ?
-Meu querido, disse
o velho com os olhos marejados e com um leve sorriso no rosto enrugado,
enquanto seus longos cabelos brancos dançavam ao vento:
-Meu jovem eu
compreendo a sua surpresa, mas como você sabe não cheguei aqui agora! Foram
anos de questionamentos e aprendizado, dúvidas e crença. Nesta minha jornada aprendi
a ouvir, a lutar e a negociar, neste caminho tive muitas dúvidas, mas cheguei à
verdadeira fé... e agora: Chegou a hora de crescermos, de subirmos, de nos
elevarmos ao topo da montanha!
Ao chegar no topo
do monte Moriah, Abrahão deitou Isaac em cima da lenha e com os olhos
marejando, preparou se para cumprir a odem Divina.
-Vendo o ancião levantar o facão afiado na
direção do pescoço de seu filho os olhos de Mayer quase saltaram e ao ver seu
espanto o bom velho disse:
-Meu filho não se
preocupe, pois na realidade não somos o corpo físico e sim a alma!
A alma quando vem
ao mundo vem a trabalho, vem para uma missão, a morte não existe, é só a
passagem de uma dimensão para outra, por isso temos que ter coragem e seguir
nossa consciência para que...
Quando Abrahao ia
degolar Isaac, o “visitante”, ouvindo um susurro virou-se para o lado:
-Muito bem! Obediência
acima de tudo!
Naquela noite,
antes de cair no sono, Meir o primogênito decidira reler o relato do sacrifício
de Isaac e como o portão estivesse aberto, entrara também!
O Caçula ficou
desconcertado. Não esperava encontrar seu irmão naquele lugar. Sem tirar os
olhos do “ato central”, Mayer caminhara na direção de Meir e ao seu lado viu
pela primeira vez a cena que tanto marcara e definira o futuro de ambos.
-Ao terminar o
sacrifício abortado, o caçula abraçou o patriarca enquanto seu irmão repetia:
-Obediencia,
obediência!
-Quando se
preparou para descer o monte, Mayer vendo seu irmão inerte, falou:
-Vamos meu irmão !
Temos que descer! Amanhã teremos aula!
-Ao perceber que
este não se movia, olhou para Abrahao, que movendo o indicador lhe disse:
-Não, meu filho!
ele não vai descer, Como não conheceu o caminho para chegar, não pode conhecer
o caminho para voltar. Venha Mayer, venha Isaac, vai ficar tarde!
-Estamos atrasados
!
-Acordem meninos,
estamos atrasados!
-Ãh...Ah ! Bom dia!
-Bom...
Espanto e medo,
estes foram os sentimentos que ambos sentiram ao se encararem pela primeira vez
após aquele sonho misterioso. Algo os levava a crer que de fato haviam se
encontrado naquela noite... Fora de seus corpos físicos...
-Passaram se dias, meses e anos e o caçula
continuava suas leituras, nas quais conheceu e vivenciou as histórias dos
patriarcas, de Moises e do povo de Israel, aprendendo também, as leis que regiam
a sociedade judaica e a dinâmica de seu dia a dia.
Seu irmão Meir,
por outro lado, fincou morada permanente no topo do monte Moriah, não arredando
pé daquele capítulo, como que fazendo questão de fixar na frente de sua “tenda”
uma faixa ostentando os seguintes dizeres em tinta dourada: OBEDIÊNCIA ACIMA DE
TUDO!
Mas meus amigos, a verdade seja dita: O tipo
de obediência que lhe atraia, não era exatamente aquela que envolvia enfrentar
pessoas ou situações que pudessem lhe tirar de sua zona de conforto. Era uma
obediência seletiva, Se tivesse que obedecer a um rico, obedecia! A um chefe,
obedecia! A Deus, obedecia... se isso não o indispusesse com... bem, deixemos
isso para La !
É verdade que Meir
assistira o supremo ato de obediência de Avraham, porem diferentemente de seu
irmão, não conhecera o caminho que levava a tal nível de resignação: Portanto, por mais que louvasse o ato de acatar
e de se auto-sacrificar, fazia-o como um expectador que louva a beleza do
espetáculo sem a possibilidade e o talento de reproduzi-lo por si mesmo.
Assim como anos
antes, na sala de banhos, preferira imaginar-se abatendo seu filho à ser
abatido por seu pai, para ele a figura de magarefe continuava sendo a mais
atraente.
Com Mayer, o gêmeo
caçula, era tudo diferente: Os valores que absorvera nos estudos e em suas
vivências extra-físicas logo se tornaram os norteadores de suas ações; Era
conhecido por sua coragem, iniciativa e conhecimento, mas sua fé era o que mais
se destacava no maravilhoso mosaico de sua personalidade!
Em sua escola, se
tornou representante de classe. Participou como voluntário em diversas Ongs,
sempre se destacando por seu dinamismo e liderança. Trouxe para seu prédio e
depois para toda a rua onde morava o lixo seletivo e divulgou através das redes
sociais iniciativas e idéias edificantes que ajudaram a inúmeras pessoas necessitadas
de atenção e de ajuda material. O lugar onde ele se sentava na sinagoga já era
bem conhecido de todos, pois apesar da idade jovem, era sempre procurado por
pessoas, que para ele direcionavam elogios e demandas das mais diversas,
aceitas sempre com um olhar divertido acompanhado por alguma piada ou
brincadeira, de modo a minimizar o elogio recebido ou o constrangimento do
pedinte. Era incrível sua sensibilidade!
Mayer gostava muito
de rezar, mas sua atividade preferida na sinagoga era ensinar os mais jovens.
Todos gostavam de suas
aulas, pois eram profundas e divertidas ao mesmo tempo, porque Mayer... Mayer
era cheio das piadas! A maioria delas eram engraçadas!...mas para falar a verdade, só tinha uma brincadeira
que Mayer fazia com certa frequencia e que ninguém achava graça, era quando
dizia: Coloquem uma tarja nesta página dizendo:
“Perigo! Não
comece por aqui !”
Se não fosse por
sua seriedade ao falar esta estranha piada, justamente o que lhe conferia certa
graça, o pessoal não riria nem um pouquinho. Mas tudo bem, não é?
Afinal de contas: As vezes, (Perigo, não comece por aqui!), a forma conta mais do que o conteúdo!
Afinal de contas: As vezes, (Perigo, não comece por aqui!), a forma conta mais do que o conteúdo!
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